Doutrina

A Pessoa Colectiva de Direito Público

Paulo Cardinal*

Delimitação conceptual

1 – O conceito de pessoa colectiva de direito público, ou como também é feita referência, legal e doutrinariamente, pessoa colectiva pública, por oposição à pessoa colectiva privada segundo o critério do tratamento jurídico 1 que acompanha a sequência das classificações dos ramos do Direito 2, e como tal é operada apenas para as pessoas colectivas de direito interno têm sido objecto de inúmeras abordagens, quer por jurispublicistas e, é polo de divergências acentuadas.

1.1 – Distinguir pessoa colectiva de direito público e pessoa colectiva de direito privado é tarefa tradicionalmente complexa e isenta de soluções e critérios unanimemente aceites 3.

1.2 – Autores há que colocam em dúvida a razão de existir desta classificação, ou divisão, das pessoas colectivas 4.

Outros autores, embora considerando útil tal classificação opinam que ela não é, contudo determinante do âmbito de actuação das pessoas colectivas e é dotada de pouco interesse prático 5. Contudo, deve assinalar-se que é antes do mais uma classificação legal, é operada em diversas situações pela própria lei.

1.3 – Mas a grande crítica operada à classificação de que nos ocupamos, além das enormes divergências de critérios e resultados apontados pela mais diversa doutrina, radicada na constatação de que, independentemente dos critérios que se utilizam, há sempre exemplos que podem ser chamados à colação, de pessoas colectivas a desempenhar actividades que em princípio seriam próprias de outra categoria. «A distinção entre pessoa pública e pessoa privada não significa uma separação das esferas do direito em que essas duas categorias se podem mover», faz notar Renato Alessi, antes mesmo de partir para a análise dos critérios utilizáveis para operar a distinção 6.

Sérvulo Correia aponta que a distinção, a ser operada, nunca deveria tomar como base a titularidade de uma capacidade de direito público ou de direito privado dado que, por um lado, todas as pessoas colectivas sem excepção (Estado incluído), têm capacidade de direito privado e, por outro lado, é frequente que pessoas de direito privado detenham capacidade de direito público 7.

2 – Esta classificação, apesar de materialmente se revelar de pouco relevo, assume uma importância especial, por exemplo na distinção entre associações públicas e pessoas colectivas com substracto associativo dotados de personalidade jurídica que prosseguem também fins públicos, mas são pessoas colectivas de direito privado 8.

3 – São apontados vários critérios para a concretização da distinção: critério do fim, critério da criação, critério da integração, critério da titularidade de poderes de autoridade, entre outros, e, evidentemente, critérios ecléticos 9.

3.1 – Critério do fim. São de direito público as que prosseguem um fim de interesse público e são de direito privado as pessoas que prosseguem um fim de interesse particular. Este é, resumidamente, o critério do fim a prosseguir pela pessoa colectiva, utilizado para operar a distinção.

3.1.1 – Questão diversa é a da obrigatoriedade de prossecução do fim. Todos os entes públicos seriam obrigados a prosseguir esses fins públicos, os entes privados ainda que prosseguissem fins públicos fá-lo-iam voluntariamente. Voltaremos a esta matéria, infra.

3.1.2 – Mas, mesmo os autores que propõem este critério reconhecem que ele não é infalível, já que há reconhecidamente pessoas colectivas privadas, unanimemente qualificadas como tal, que prosseguem fins públicos. No ordenamento jurídico português podemos apontar as pessoas colectivas de utilidade pública e mesmo as fundações que, segundo o artigo 188.º, n.º 1, do Código Civil, só poderão ser reconhecidas se prosseguirem um fim de interesse social e, ainda, as pessoas colectivas concessionárias. Este critério depara, assim, com uma dificuldade que, por, ora, se afigura intransponível. 10.

3.1.3 – Mas, se este critério é falível, ele não deixa de ser importante, já que nenhuma pessoa colectiva pública pode prosseguir, apenas, fins públicos. Como refere Garrido Falla: «Não é que o critério do fim seja falso, apenas sucede é que é insuficiente». 11.

3.1.4 – A questão levantada em 3.1.1 deve ser agora tratada. Nem a obrigatoriedade de prossecução de fins públicos consegue ser suficiente, embora a generalidade das pessoas de direito privado que prosseguem fins públicos o faça voluntariamente, existem alguns entes privados que prosseguem necessariamente fins públicos; por exemplo algumas sociedades concessionárias 12 e mais amplamente as ditas «instituições particulares de interesse público» 13.

3.2 – Critério de criação

3.2.1 – Segundo este critério serão pessoas colectivas públicas as criadas pelo Estado ou outras pessoas colectivas públicas; as restantes seriam pessoas colectivas privadas. Atende-se, pois, à origem da pessoa colectiva; «São pessoas jurídicas de direito público as constituídas (…) por lei ou por acto administrativo (…) 14».

3.2.2 – Este critério é actualmente refutado quer na doutrina civilista quer na doutrina administrativa, por ser facilmente confrontado com pessoas colectivas que lhe escapam, já que nas ordens jurídicas actuais há pessoas colectivas públicas não criadas por outras pessoas colectivas públicas e há pessoas colectivas privadas criadas por entes públicos, nomeadamente empresas comerciais 15.

Como reafirma Renato Alessi, esta teoria é facilmente vulnerável quando faz entroncar a qualidade de pessoa pública na origem directa de um acto de poder. 16.

3.2.3 – Este é um critério que não dá garantia mas é de afastar totalmente pois, como refere Luís Carvalho Fernandes este é um critério que será como que um sintoma de qualidade de pessoa colectiva pública 17.

3.2.4 – Este critério funcionará, assim, mais na perspectiva de qualificação de pessoas como públicas, sobretudo se se seguir a configuração que lhe dá Jean Rivero, não tanto como criação material de um ente público, mas mais como dependência para a sua criação duma «autoridade pública» 18, o que permite, por exemplo, que pessoas que surjam no âmbito do direito privado possam posteriormente ser consideradas públicas. Não sendo necessário extinguir a pessoa colectiva em questão e, posteriormente, recriá-la, passa é a ser reconhecida como pública, ou convertida, se se preferir. (Esta diferença de procedimento implica, por exemplo, que os titulares de órgãos das pessoas colectivas convertidas, não terão forçosamente que perder essa qualidade).

3.3 – Critérios de integração

3.3.1 – Segundo este critério, seriam pessoas colectivas públicas as que se integram na organização do Estado ou, eventualmente, na organização de outros entes públicos, como regiões autónomas, autarquias locais ou o Território de Macau. Está sobretudo em causa a existência ou não de tutela por parte de um ente público «superior», normalmente o Estado. Essa tutela seria não a de mera legalidade mas uma tutela de mérito.

Há exemplos claros de entes privados, (como empresas intervencionadas e o caso paradigmático das instituições de solidariedade social), sujeitas a tutela de mérito, mas é expressamente ressalvada a sua natureza de pessoa colectiva privada 19.

Não vale esta classificação, no seu elemento essencial tutela-se os entes públicos como região autónoma ou autarquia local.

Uma última crítica se afigura: não é por determinado ente estar integrado numa «organização administrativa» que terá natureza pública. Por ter natureza pública é que poderá estar integrado na Administração Pública, pelo menos no sentido orgânico ou subjectivo que é atribuído a Administração Pública.

3.4 – Critério da titularidade de poderes de autoridade

3.4.1 – Este é um critério sedutor, segundo o qual as pessoas colectivas públicas serão as que detêm poderes de autoridade: o «jus imperii». É defendido, entre nós, por Manuel de Andrade e Mota Pinto.

3.4.2 – A este critério são oponíveis, desde logo, críticas: há pessoas colectivas públicas que não exercem poderes de autoridade nas suas relações com os particulares, e não exercem, de facto, ou não podem exercer, a potestade «imperium» 20.

3.4.3 – Crítica mais profunda apontada a este critério é a constatação da existência de entes privados titulares de alguns poderes de autoridade, como algumas instituições particulares de interesse público (na acepção que lhes dá Freitas do Amaral).

3.4.4 – Numa perspectiva diversa, a do sujeito que entra em relação com a pessoa colectiva pública, ou, como é referido, na perspectiva do cidadão que pretende exercer um direito fundamental, é defendido que o ente público é aquele que pode «impor acções, omissões ou prestações 21 ao cidadão, por sua iniciativa e autoridade 22. Deve dizer-se que este critério leva a que pessoas colectivas públicas não sejam consideradas entes públicos, pelo que esta formulação deve valer apenas para a situação específica que os seus autores a construíram, a saber: para o enquadramento no regime dos direitos, liberdades e garantias

4 – Parece-nos forçoso concluir que nenhuma destas teorias, por si, vale, ou é bastante, para distinção das pessoas colectivas em públicas e privadas.

4.1 – Esta situação resulta da crescente aproximação dos direito público e privado e da aproximação da actividade administrativa pública à actividade típica dos entes particulares, sua estruturação e suas técnicas jurídicas 23 de tal sorte que há autores que consideram estarmos já confrontados com a existência de pessoas colectivas de direito misto, uma categoria intermédia 24.

5 – A tendência actual da doutrina é, nesta matéria, caracterizada pelo recurso a critérios ecléticos dos quais podemos apontar os exemplos de Freitas do Amaral, Renato Alesi e Castro Mendes.

5.1 – Parece-nos evidente a necessidade de recurso a um critério eclético. Assim serão, pessoas colectivas públicas aquelas que preencham, simultaneamente, várias características ou índices.

6 – Será pessoa colectiva pública:

a) a pessoa colectiva que prossegue necessariamente interesses públicos;

b) a pessoa colectiva criada por acto do poder público ou, não o sendo, é reconhecida posteriormente como sujeito de direito público;

c) a pessoa colectiva que tem sempre capacidade de direito público, que se rege, em princípio, por estatuto de direito público, exercendo, normalmente, poderes de autoridade em nome próprio e sujeito a restrições públicas, como princípio da legalidade e outros princípios reguladores da actividade pública geral.

6.1 – As pessoas colectivas que reúnem cumulativamente estas três características são pessoas colectivas públicas.

7 – As pessoas colectivas públicas, prosseguem, e sempre necessariamente, interesses públicos, ainda que o não façam de forma exclusiva, são criadas «ab origine» pelo Estado ou outras entidades públicas, ou, quando criadas, por particulares recebem em momento posterior o reconhecimento de pessoas de direito público e têm capacidade de direito público, além de sujeitas ao princípio da legalidade, no sentido de não poder agir contra o que dispõe a lei, (o que a não distinguiria dos entes privados), e ainda no sentido de «reserva da lei» ou da conformidade (só pode praticar aqueles actos que a lei expressamente admite que pratique), entendido como exigência de que a prática de acto pela Administração corresponda a prévia estatuição de uma norma jurídica 25.

7.1 – Qualquer pessoa colectiva de direito público (exercendo funções administrativas) está, nessa qualidade, integrada na Administração Pública; ao contrário do que sucede com as pessoas de direito privado, que, ainda quando prossigam fins públicos serão meros colaboradores da Administração Pública, não fazendo parte integrante da Administração 26. Este é, sem dúvida, um dos principais corolários extraídos da distinção operada entre pessoas colectivas públicas e pessoas colectivas privadas.

7.2 – Outros reflexos da sua personalidade de direito público se poderão surpreender no seu regime: a sujeição à jurisdição dos tribunais administrativos, a integração no conceito de poderes públicos, para efeitos de sujeição à actuação do Provedor de Justiça, enter vários outros.

Notas

 1 Luís Carvalho Fernandes em Teoria Geral do Direito Civil, A.A.F.D.L., Lisboa 1984/85, Vol. I, T. II, pág. 452.

 2 Castro Mendes em Teoria Geral do Direito Civil, A.A.F.D.L., Lisboa , 1978, Vol. I, pág. 260.

 3 Manuel de Andrade afirmava sobre esta questão: «já se notou que acerca deste ponto existem na doutrina as maiores discordâncias. Trata-se com efeito de uma “vexata questio”, de uma questão sobre a qual, apesar de antiga e largamente versada pelos autores, ainda não pôde formar-se uma “communis opinio”, ou sequer uma corrente com decisivo predomínio sobre as outras», em Teoria Geral da Relação Jurídica.

 4 Sérvulo Correia em Noções de Direito Administrativo I, Lisboa, 1980, págs. 137 e segs.

 5 Assim Mota Pinto em Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 3.a ed., 1989, pág. 289.

 6 Renato Alesi em Instituciones de Derecho Administrativo, Bosch, Barcelona, 1970, T. I, págs. 42 e 43.

 7 Em Noções…, págs. 137 e 138.

 8 Reflexo paradigmático da utilidade desta classificação é encontrado em Macau, onde em diversos locais têm sido encontradas qualificações de pessoas colectivas privadas como associações públicas, portanto pessoas colectivas públicas. Veja-se Anuário 90, SAFP, Macau, policopiado, pág. 6, ou Estrutura Organizacional da Administração Pública de Macau, SAFP, 1990, pág. 6, onde são apontados o Laboratório de Engenharia Civil de Macau e o IPOR. Ambas pessoas colectivas privadas.

 9 Para um enquadramento dos mais importantes critérios sugeridos ver, Freitas do Amaral em Curso de Direito Administrativo, Almedina, Coimbra, 1988. vol. I, pág. 580 e segs. Ver ainda Garrido de Falla em Tratado de Derecho Administrativo, Tecnos, Madrid, Vol. I, 11.a ed., 1989, págs. 323 e segs., e autores aí referidos.

 10 Massimo Giannini escreve: «Quando si mostró che enti pubblici ed inti privati potevano avere glistessi fini, anche la stessa teoria del fini si avvió al tramonto» em Diritto Administrativo, Giufrè, Milano, 1988, Vol. I, pág. 183.

 11 Em Tratado…, Vol. I, pág. 324.

 12 Neste sentido Sérvulo Correia em Noções…, págs. 138 e 139.

 13 Freitas do Amaral em Curso…, pág. 581 e remissões aí efectuadas, mas ver afirmação da págs. 588 e ainda 549 e seg. Em sentido contrário manifesta-se expressamente M. Esteves de Oliveira em Direito Administrativo, Almedina, Lisboa, 1980, Vol. I, pág. 216, que aponta, que em última instância assiste ao ente privado a possibilidade de se extinguir para não ter que prosseguir fins públicos.

 14 Ennecerus/Nipperdei em Derecho Civil (parte geral). Bosch, Barcelona, 1953.

 15 Cfr. Freitas do Amaral em Curso…, pág. 581, Sérvulo Correia em Noções…, págs 141 e seg., Luís Carvalho Fernandes em Teoria…, Vol. I, T. II, pág. 455 e 456. Castro Mendes em Teoria…, Vol. I, pág. 263 e os exemplos que apontam, ainda Jean Rivero, Direito Administrativo, Almedina, Lisboa, 1981, pág. 55 e exemplos aí referidos.

 16 Em Instituciones…, vol. I, pág. 45.

 17 Em Teoria…, Vol. I, I, nota na pág. 456.

 18 Jean Riverro em ob., cit., pág. 53.

&19 Luís Carvalho Fernandes em Teoria Geral do Direito Civil, A.A.F.D.L., Lisboa 1984/85, Vol. I, T. II, págs. 456 e 457. Castro Mendes em Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, pág. 263.

 20 Freitas do Amaral em Curso…, págs. 581 e seg, e exemplos aí citados; Garrido Falla em Tratado…, Vol. I, pág. 325.

 21 João Caupers em Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, Coimbra, 1985, pág. 154.

 22 Assim Vieira de Andrade em Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, Coimbra, 1987, págs. 268 e 269 e João Caupers em Os Direitos…, págs. 154 e 155.

 23 Sobre os efeitos desta tendência na teoria das pessoas colectivas públicas, ver Jean Rivero em ob., cit., págs. 54 e seg., entre muitos outros autores.

 24 Jean Carbonnier em Derecho Civil, Bosch, Barcelona, 1960, T. I, Vol. I, págs. 333 e segs.

 25 Freitas do Amaral, Princípio da legalidade in Pólis – 3, págs. 976 e segs. Sérvulo Correia em Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Almedina, Coimbra, 1987, pág. 755 e para maiores desenvolvimentos, págs. 17 e segs.

 26 Freitas do Amaral em Curso…, pág. 549 e seg; Decreto-Lei n.º 460/77 de 7 de Novembro, art.º 1.º, n.º 1, onde se afirma a relação de cooperação e não de integração das pessoas colectivas de utilidade pública (pessoas de direito privado) na Administração Pública.

*Paulo Cardinal – Jurista do Gabinete para os Assuntos Legislativos

Texto publicado na edição de «O Direito» de Maio de 1991.

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